Lar do Luca

A caixa era pesada, mas nada que Julien não conseguisse carregar. Havia chegado pela manhã, mas por conta de outros reparos, e de o carteiro ter ignorado o interfone recém instalado nos grandes portões da propriedade, ele demorou um pouco a ver que algo tinha chegado para um dos moradores.

A caixinha, com uma seta que lembrava um sorriso, foi levada escada acima até o corredor com os quartos da ala Leste. Finalmente pôde ver a grande letra L. Colocou a caixa no chão, e ajeitou suas roupas e cabelo antes de bater.

Assim que Arquette chegou de frente à porta ela abriu-se de maneira suave, revelando que atrás dela estava parado um homem jovem, de cabelos negros e uns dez centímetros maior que Julien. Ele tinha heterocromia, um olho azul e o outro amarelo estavam por trás de um óculos de armação fina e lentes redondas. Vestia-se para o frio, ainda que não estivesse tão frio ali dentro e tinha um sorriso paciente em seus lábios. Ele ergueu sua mão direita e a pesada caixa que Julien havia colocado no chão ergueu-se, como uma pluma sendo carregada pelo vento, e flutuou graciosamente para dentro do quarto, passando por cima da cabeça do homem de cabelos escuros e indo para a direita dele, saindo do campo de visão de Julien.

- Olá. - a voz dele soou como se ele estivesse sussurrando no ouvido esquerdo de Julien. Apesar de ele estar na frente do morto-vivo e de sua boca se mover enquanto ele falava, soava ao lado de Julien. - Obrigado por trazer essa caixa. Entre, deixe-me servi-lo uma xícara de chá, é o mínimo que posso fazer pelo seu serviço.

Além sua voz vir de um local diferente, ele falava de maneira ritmada. Ele estendia a primeira sílaba, tornando-a longa enquanto as próximas duas se mantinham curtas se assim fossem. Era um ritmo estranho e antigo, porém bom ao ouvido. Também havia a impressão de que ele estava falando em outra língua devido à forma como sua boca se movimentava, mas sua fala chegava traduzida aos ouvidos de Julien. O homem abriu espaço para que o jardineiro passasse e fechou a porta atrás dele, a caixa que havia sido entregue havia desaparecido completamente. Havia uma mesinha redonda com quatro cadeiras ao redor dela, uma se afastou lentamente para que Julien pudesse se sentar nela, assim que o fizesse a cadeira iria para frente, colocando-o confortavelmente próximo à mesa.

- Chamo-me Luca Borgia. - o homem falou, sentando-se de frente para Julien. Com um gesto breve apareceram na frente deles uma chaleira ornamentada, assim como duas xícaras, uma para cada. - Você é quem?

Luca:

- Ah, oi! Isso aqui chegou pra você... - Julien conseguiu dizer, antes que a caixa saísse flutuando.

Quando a resposta veio, também um calafrio percorreu a espinha do rapaz, pois não esperava aquele sussurro. Ele deu uma risadinha sem graça antes de responder. Mas fora aqueles sussurros estranhos, o rapaz parecia bem amigável, então Julien entrou.

Não viu a caixa em lugar algum, e imaginou quem e o que seria aquele rapaz que usava magia tão banalmente. Ele se sentou na cadeira oferecida, educadamente, como sempre. A primeira resposta viria a seguir.

- Eu sou Julien Arquette, muito prazer. - Ele estendeu a mão para um aperto.

- Sou morador aqui também, e estou renovando a propriedade. Pouco a pouco. Cuido da estufa também. É um belo quarto, Senhor Borgia. Você conseguiu mesclar bem os móveis que já pertencem à casa com os seus próprios, interessante!

Ele observou a chaleira sendo conjurada do nada, e não pôde deixar de comentar:

- Isso é bem fascinante. Você é algum tipo de bruxo?

- O que eu sou é mais complicado do que uma simples palavra possa definir. Porém, se tiver que escolher um termo para me definir, eu diria que sou um colecionador. - Luca elegantemente bebericou do chá que havia servido. - Sobre meu uso de magia, isso se dá porque as aparências enganam, jovem Arquette. Eu não sou humano.

Um sorriso leve e doce brotou nos lábios de Luca, como uma rosa-do-deserto preta durante a primavera. Não deveria vir como uma surpresa para Julien, ao menos não uma tão grande, que um dos habitantes daquele local fosse algum tipo de entidade. Na verdade o que mais haviam ali eram habitantes de natureza inumana, porém estes geralmente se escondiam ou então agiam de uma forma que condizia com sua natureza. Luca, porém, até mesmo para os olhos mais treinados, tinha a aparência de um jovem adulto. Talvez um pouco pálido demais ou então chamativo, graças à sua heterocromia, mas realmente aparentava ser humano. Ele tomou mais um gole do chá, que tinha gosto de chá verde preparado com toda a atenção e dedicação possíveis, e pousou a xícara no pires.

- Eu vim para cá em busca de uma certa bruxa, creio que ela possa me guiar até o próximo item que adicionarei na minha coleção. Ou ao menos ela servirá como um bom entretenimento enquanto eu próprio faço as minhas buscas. - Luca suspirou. - Não tenho pressa, mas admito que não ter me encontrado com ela ainda tem me incomodado.

Luca piscou brevemente.

- Perdoe a minha falta de modos, você mal entrou em meu quarto e já comecei a despejar meus problemas. - Luca sorriu gentilmente. - Me diga, jovem Arquette, seu único objetivo aqui é reconstruir esta Morada?

Julien ouviu atentamente, como sempre fazia com todos os moradores que encontrava, e afinal se achou um pouco ingenuo demais por não ter notado antes que aquele ser, apesar da aparência agradável, não era realmente humano. Ele precisava trabalhar mais em sua percepção das coisas, ou seria para sempre um serviçal bobinho que sempre seria facilmente enganado. Mas aquele pensamento tão rápido quanto veio, já havia sumido da mente de Julien, especialmente quando as palavras "colecionador", "bruxa" e "reconstruir" foram ditas.

- Você deve estar se referindo à senhorita Stellarya, certamente. Ela não é fácil de ser encontrada, realmente. É como um chamado que se faz em silêncio e então, de repente, lá está ela. Como se de algum modo a casa avisasse a ela, ela vem até você.

Ele esquentou as mãos com o calor da xícara entre elas, e sorriu.

- Sim, basicamente é este meu projeto principal no momento. Sou restaurador em geral, e em vida treinei em diversos monumentos e construções tombados como patrimônio histórico. Agora, vi nessa mansão uma oportunidade de continuar fazendo o que amo. E enquanto isso, acolhendo aqueles que precisam de acolhimento. Mas, em outros tópicos, o senhor mencionou uma coleção?

Ele tombou o corpo levemente na direção de Luca.

- Também sou um colecionador! - ele preferiu não mencionar que a esse ponto, parecia mais uma obsessão, do jeito que aquele quarto andava cheio de tranqueiras interessantíssimas (aos olhos de Julien). - O que o Senhor coleciona?

- Sim, é ela mesma a quem me refiro. Mas, mesmo que assim seja, temo que ela esteja me evitando. - o tom de voz de Luca era suave, mas havia um quê de diversão ali. - Assim como eu ouvi falar dela pela boca de outros, ela ouviu falar de mim do mesmo modo. Tenho certeza de que ela me evita por conta de algumas informações errôneas que obteve sobre mim.

O ser ouviu o que Julien tinha a dizer. Aquela mansão, interessante como ela era, tinha uma enorme falha na visão de Luca: ela não poderia ser adicionada à sua coleção. Ele já havia tomado para si locais inteiros, mas alguns eram protegidos por magia antiga, tão antiga quanto ele próprio, que tornavam a aquisição de certas coisas impossíveis. Mas era um belo lugar, isso ele precisava reconhecer.

- Coleciono tudo aquilo que me interessa e que pode vir a interessar alguns dos meus clientes mais regulares. No momento, porém... - Luca tamborilou seus dedos na mesa. - Já ouviu falar do Útero do Verme?

Assim que aquilo foi dito, o ar pesou. Julien certamente nunca teria ouvido falar sobre aquilo. Primeiramente por ser um assunto do qual não lhe era interessante e em segundo lugar por se tratar de um rumor tão incomum e tão raro que poucos haviam ouvido falar sobre ele. Vendo que Julien não sabia nada sobre o assunto, Luca deixou um pequeno suspiro escapar, mas continuou a história com certo entusiasmo.

- Se trata de uma história antiga. Apesar de mestiços entre humanos e demônios não serem incomuns, é raro que uma mulher humana engravide de um dos filhos do Inferno. Esse Útero é especial, porém. O pai é um demônio qualquer e a mãe é uma humana qualquer. Mas, dentro do Útero, há um novo ser. Nem demônio, nem humano e muito menos mestiço. - o modo como Luca falava sobre aquilo deixava claro o fascínio que ele tinha pelo assunto. - Venho caçando ele há anos, mas ele é elusivo. É como se tivesse desenvolvido uma mente própria assim que foi gerado.

Luca terminou seu chá.

- É isso que coleciono, Jovem Arquette. Eu coleciono tudo que é amaldiçoado de certa forma. Existências como a sua, por exemplo, me são interessantes. - ele disse e então piscou um pouco, rindo. - Mas não se preocupe, não tenho interesse em adicioná-lo à minha coleção. Já tenho mortos vivos o suficiente.

Julien negou com a cabeça ao ser perguntado sobre o Útero do Verme, meio enojado com o nome. Em vida, ele odiava vermes. Na morte, ele faria tudo o que pudesse para evitá-los, embalsamando-se todos os meses.

Ouvindo tudo com a xícara já vazia - o chá estava realmente delicioso-, ele se lembrou dos avisos de Noralis sobre os moradores daquela casa, assim que chegou ali. Ainda que Borgia tivesse garantido que não era sua intenção adicioná-lo à coleção, foi difícil para Julien evitar uma expressão de espanto pelo absurdo.

- O senhor... Você coleciona criaturas? - ele precisava ter certeza. - Criaturas pensantes?

- Nem sempre criaturas, mas de certa forma... sim. Apesar de ser difícil chamar elas de pensantes. - Luca abriu sorriso. - O que acha de conhecer elas?

Julien notaria tarde demais, mas a única fonte de luz naquele momento era uma vela em cima da mesa. Vela essa que ele teria certeza de que não estava ali. O resto era um breu, nada era visto além daquela pequena mesa e da cadeira onde Julien se sentara. Luca desaparecera completamente, mas o morto-vivo sentiria que ele ainda estava ali, esgueirando-se nas trevas à espera... do que, exatamente? O que era que Luca Borgia aguardava e desejava naquela pequena apresentação? Da escuridão Julien ouviu o som de um animal, parecido com uma ovelha, porém estranhamente molhado, como se o animal se engasgasse em algo. A luz então voltou e Julien já não se encontrava no quarto de Luca, abaixo de seus pés havia terra batida e acima dele a luz da lua. Mais adiante havia um celeiro do qual apenas uma luz avermelhada escapava pela janela acima da entrada. O som da ovelha continuou por alguns instantes e então se cessou. Julien não tinha mais para onde ir, atrás e para os lados havia apenas terra, terra e mais terra. Nenhum sinal de civilização exceto pela existência do celeiro.

Era uma atmosfera estranhamente convidativa, a brisa que passava pelo ar trazia um presságio de chuva. Acima poucas nuvens se reuniam, mas eram grandes e escuras. Não demorou para começar a chover uma chuva gelada, a água salpicava o corpo de Julien e aumentava sua pressão cada vez mais, forçando-o para dentro do celeiro. Como um zumbi ele não poderia ter hipotermia, mas a sensação causada pela água era uma dolorosa. Logo em seguida começou a chover pedras, dando a Julien pouca opção que não fosse entrar dentro do celeiro. E assim que ele entrasse ele veria, iluminado por um trio de velas, a ovelha cujo som ele escutara antes. Não se tratava de uma ovelha, era jovem demais para isso, então era correto dizer que se tratava de um cordeiro.

A criatura tinha por volta de um metro e setenta de altura quando ficava em suas patas traseiras, ela sempre estava em suas patas traseiras na presença de seres vivos. O branco de sua lã era marcado pelo vermelho do sangue que vertia para fora do ferimento aberto em seu corpo. Desde o começo de seu peito até a barriga o cordeiro foi cortado e aberto, revelando seu coração ainda pulsante, assim como suas entranhas que não possuíam a forma normal, mas sim a de uma cruz invertida. Porém o mais chamativo não se encontrava no seu ferimento permanente, mas sim em suas três cabeças. De forma semelhante à um humano siamês, o cordeiro tinha suas três cabeças coladas uma na outra, a do meio não possuía olhos, enquanto a esquerda tinha olhos bem arregalados e pretos, como dois ônix malditos, lhe faltava também a pata dianteira esquerda. Na sua direita estava a cabeça mais jovem, com cortes feitos em sua testa para parecer que carregou uma coroa de espinhos. A boca sempre aberta, de onde vertia um líquido pustulento e escuro.

O animal emitiu mais uma vez aquele som engasgado, vindo de sua boca esquerda.

- Este é o Cordeiro de Três Cabeças. Um nome pouco criativo, tal qual o homem que o criou. - a voz de Luca Borgia ecoou. - É isso que acontece quando humanos sem o menor talento e com pouco conhecimento mágico se envolvem em certas artes. Uma coisa tosca, mas imortal. É, como deve ter percebido, uma zombaria da Santíssima Trindade cristã. O seu criador foi um homem chamado Elias Moore, um homem insano de poucas qualidades. - enquanto Luca falava a criatura estremeceu e sentou-se em cima de uma manjedoura. - Eu adicionei este à minha coleção porque havia um certo humano interessado nele, mas ele morreu antes de terminar a compra. Por enquanto ele vai ficar aí enquanto procuro outro comprador. Se é que existe outro comprador.

Julien soltou um hesitante "Uhm....", mas antes que pudesse expressar seu desprazer, tudo já estava coberto de escuridão. Uma breve olhadela para o lado e logo o próprio Luca já não estava mais ali. Se levantar foi instintivo, e tão logo ele deixou de tocar a mesa, ela já não estava mais ali. Só havia aquele balir engasgado que faria o coraçãozinho do jovem zumbi bater mais forte de medo, caso ele ainda tivesse um. Quando a luz voltou a tocar os arredores, ele passou alguns momentos encarando o céu, o vento juntando as grandes nuvens até que os primeiros e grossos pingos caíssem sobre sua cabeça.

Ele não gostou nada da luz vermelha sinistra, mas seu médico era extremamente meticuloso em suas instruções para melhor conservação de um corpo zumbificado. Uma delas era ficar longe de água a todo custo, salvo pelos fluidos de limpeza para manutenção semanal. Ele não gostava nada de estar ali fora, e sabia que odiaria ainda mais o interior. Mas logo a chuva de granizo o forçou a tomar uma decisão mais rápido.

Uma vez lá dentro, ele foi confrontado com o que talvez fosse a visão mais bizarra e perturbadora que já havia visto em sua vida e morte, desde que havia visto Udra. Aquilo superava o espectro da mansão em tantos níveis diferentes.

Um ovino andando como um bípede, o peito aberto como um cadáver em uma mesa fria de necrotério, o interior que gritava sacrilégio, e obviamente as três cabeças que sozinhas já seriam combustível de pesadelos por muitos e muitos anos.

Julien perdeu a força das pernas, ao ouvir o balido novamente. Uma atitude inteiramente humana, mas justificável, já que ele já havia provado ser mais humano que muitos seres vivos por aí.

E também por isso, seu horror momentâneo foi parcialmente interrompido após ouvir sobre a origem daquela criatura.

- Ele... c-consegue nos compreender? - ele olhava para a criatura agora tentando encontrar, em algum dos quatro olhos disponíveis, um vestígio de inteligência.

- Compreender? - Luca soltou uma risada de escárnio. - Não. Não há nada que essa criatura compreenda. Pode empurrá-la, chutá-la, o que for. Ela vai se levantar e voltar a se sentar na manjedoura.

Nos olhos da criatura, justo onde Luca procurava por inteligência, havia apenas um vazio imenso. A criatura era, como Luca havia dado a entender, quase sem inteligência. Havia algo no fundo dos seus olhos, perdido no meio daquele vazio.

Dor.

A criatura poderia até não saber como expressar o que sentia, mas os olhos são a janela da alma e mesmo que aquela criatura tivesse uma alma amaldiçoada ela ainda assim sentia a dor que sua existência gerava. O cordeiro olhava para Julien, porém sua expressão não revelava nada. Ele parecia não registrar muito além da presença do morto vivo ali. O animal não possuía a pata dianteira esquerda, logo ele ergueu a sua pata direita que ao invés de um casco possuía dois dedos humanos, eram pequenos e inchados, como os de um bebê. A criatura baliu novamente e a escuridão retornou, o som ecoando e se perdendo na distância. Julien então se encontrou em um lugar novo.

Até onde os olhos conseguem alcançar há fileiras de corpos empalados, as pontas das lanças saindo da boca aberta dos cadáveres. O cheiro de podridão, excrementos e decomposição se alastra pelo local. É como uma floresta. Aqueles que estão ali empalados acabam por vezes gemendo de dor e se debatendo. É constantemente noite e a lua acima é vermelha, parcialmente escondida por nuvens escuras. Lembra um pouco o cenário noturno do local anterior, mas desta vez o ar é ainda mais pesado e apesar do som não ser constante, os lamentos de dor são frequentes o suficiente para fazer com que a cacofonia se tornasse alta demais para uma pessoa normal suportar. Para a sorte de Julien, por ser um morto-vivo ele conseguia aguentar melhor que a maioria, ainda assim Luca ofereceu à ele um pequeno abafador de ouvidos que surgiu em pleno ar.

Na frente de Julien uma das lanças partiu-se logo abaixo dos pés de um dos homens, seu cabo era mais grosso que o comum e atravessava o ânus do homem com a lâmina saindo manchada de sangue pela sua boca. Ele gemeu com a lança ainda entalada na sua garganta, um som repugnante, e começou a se arrastar pelo chão na direção de Arquette, mas antes que ele pudesse fazer algo o homem levitou no ar e foi levado diretamente para o mesmo local de antes, o cabo da lança se reforjando perfeitamente.

- Estes são os Campos de Empalamento do Vlad Dracula. - apresentou Luca, como um guia turístico. - Imagino que já conheça bem a história por trás dele, Drácula é o vampiro mais famoso afinal de contas. Este aqui eu tenho um apreço especial, foi durante uma das campanhas dele onde ele empalou esses homens em cima de um Local de Poder, gerando tudo isso que você está vendo. A "criatura", por falta de palavra melhor, se trata desde local inteiro.

Julien podia não ser mais tão sensível ao calor, ou ao frio. Nada realmente o afetava nesse sentido. Mas a dor nos olhos daquele ser? Aquilo sim fez seu coração apertar. Ele estendeu a mão para a criatura, poucos segundos antes que tudo desaparecesse ao seu redor, apenas para reaparecerem, desta vez ainda pior.

O zumbi estremeceu, seus braços apertando-se ao redor de seu corpo, tentando conseguir algum tipo de conforto. Olhando para aquelas cenas horríveis, ouvindo os gritos e gemidos engasgados das vítimas, ele ignorou o abafador de som. Que piada. Em seu coração puro uma fincada de raiva transpassou. Era irônico e extremamente cruel que Luca oferecesse aquele item, como se aquilo fosse melhorar qualquer coisa. Mas sua atenção logo foi levada para o homem cuja lança havia se quebrado. Instintivamente Julien foi até ele, sem medo de sua aparência grotesca, apenas preocupado em como ele poderia ajudar alguém naquele estado. Mas antes que ele pudesse fazer algo mais, ele já havia sido levado para o lugar de antes.

Luca prosseguiu com seu monólogo, e Julien se recusou a se mover.

- Para com isso, Luca. - o choque havia sido tamanho que ele se esqueceu das formalidades. - Eu não gosto deste lugar, eu não quero ver mais nada da sua coleção. - sua voz tremulou, e ele se encolheu, se agachando e afundando o rosto nos braços. As lágrimas vertiam abundantemente de seus olhinhos verdes, ocultos pelo cabelo e os joelhos.

- Você coleciona medo e desespero, coleciona dor e sofrimento, eu não quero ficar aqui mais. Me leva pra casa, por favor. Não quero mais ficar aqui, se você não vai me deixar ajudar eles. Me tira daqui, Luca, por favor... - ele começou a suplicar, entre soluços.

- Não há como ajudá-los, meu caro zumbi chorão. - a voz de Luca mantinha-se calma, apesar do insulto adicionado ao final da frase. - Estas obras estão além da sua capacidade. Além da capacidade de qualquer mortal, devo adicionar.

Começou a chover sangue. As gotas caíam de maneira devagar e salpicavam o corpo de Julien. Ele teria a certeza de que Luca jamais o deixaria ir para casa. Estava claro que o ser se divertia com todo o sofrimento que colecionava, incluindo o de Julien. Infelizmente, ele havia caído na armadilha daquele ser a partir do momento que aceitou entrar naquele quarto. Aquele era seu domínio, seu pequeno reino dentro da mansão. Como um verdadeiro rei cruel, tudo o que valia ali era a palavra de Luca, a palavra de Ozzoron. De maneira involuntária, o corpo de Julien se levantaria, como um boneco controlado por cordas. Sua boca se abriria e palavras além da compreensão dele começariam a deixar a sua boca, o sangue que chovia adentrando a mesma e enchendo-o com aquele gosto de cobre distinto. Aquele local era frio, tal qual a chuva que caía sobre o zumbi e as palavras que deixavam a sua boca eram ainda mais gélidas do que o próprio vácuo do espaço.

Uma mão tocou o ombro de Julien. Diferente do mundo ao redor dele, havia calor ali.

Julien se viu de volta no quarto de Luca, ajoelhado no chão enquanto na sua frente erguia-se uma estranha criatura. Vestido com um sobretudo azul escuro com traços dourados, a criatura não tinha o resto da cabeça acima do nariz, apenas uma esfera flamejante flutuava naquele espaço. Sua pele era como a de uma vítima de um incêndio, parecia derretida e era escura. Carne viva em um corpo amaldiçoado. A criatura tinha uma das mãos estendidas na direção do rosto de Julien, mas a puxou para trás assim que a pessoa que havia tocado o ombro do morto-vivo deu um passo para a frente. Não era uma atitude de medo ou reverência, visto que Luca, ou Ozzoron, suspirou assim que fez aquilo.

- Você tem que acabar com a diversão dos outros sempre que tem a oportunidade, Von Brandt? - a criatura voltou a forma que Luca havia visto antes, de um jovem de cabelos negros, e então sentou-se na cadeira onde Julien antes se sentara.

Ao lado do zumbi havia um homem um pouco baixinho, de cabelos vermelhos presos e com uma barba curta e mal feita. Vestia-se com várias camadas de roupa, como se estivesse sempre com frio, tinha uma cicatriz em um dos olhos, mas este dito olho ainda enxergava muito bem visto que ele se voltou para Julien por um momento e então para Luca.

- Esse aqui é importante para uma amiga minha. - explicou-se o ruivo, estendendo uma mão para ajudar Julien a se levantar. - Vamos, de pé. Não quero ficar muito tempo na frente desse esquisito.

- Você é muito sem graça. - Luca suspirou mais uma vez. - Vá, leve o meu brinquedo embora. Uma hora ele volta. Todos voltam.

Ozzoron:

Walter Von Brandt:

O desespero tomava conta da consciência de Julien, mas ele não tinha controle algum sobre seu corpo ou sua voz. Mais uma lágrima de fluido embalsamador escorreu do canto de seu olho enquanto seu corpo era erguido e ele era forçado a olhar no rosto daquele ser amaldiçoado.

Sua mente gritava em silêncio agonizante, até que sentiu aquela mão em seu ombro. Como um anjo, que o agarrava com força, e o arrancava da perdição. Ele arfou baixo, agradecido pelo salvamento. Olhou para Luca com remorso, mas logo desviou seus olhinhos verdes para aquele que se chamava Von Brandt.

Ele pegou sua mão e se ergueu, ainda muito menor que o homem. Encolhido, ele sentiu o coração pesar. Odiava aquele sentimento. Odiava desconfiar dos outros, odiava se ressentir. Odiava o fato de que, mesmo sendo salvo por este, não sabia se deveria de fato confiar em Von Brandt.

Uma vez fora do quarto, Julien parou, com os braços ainda ao redor de si mesmo, como se tentasse em vão se confortar. Odiava pessoas que amavam brincar com as vidas das outras, mas aquelas colunas coríntias, aquelas paredes, os painéis. Tudo ali parecia atrair o pior da humanidade. Ele respirou fundo. Não.

Não podia se deixar pensar assim. Não com pessoas como Zoe, Noralis e Konstantinos por perto.

- Muito obrigado, Sr. Von Brandt. É uma pena conhecê-lo em uma situação tão humilhante.

O coração de Julien se tranquilizou assim que ouviu o nome de Zoe. Se aquele homem era um amigo dela, ele poderia confiar nele... Certo? Tudo ainda era bem confuso. Ainda assim, ele conseguiu acompanhar Walter e caminhar ao seu lado.

- Acho que ele só quis se divertir com meu desespero,. Eu fiquei curioso quando ele disse que era um colecionador, e, bem... Não preciso nem dizer que não esperava encontrar aquele tipo de coleção.

Julien ainda mexia nervosamente com seus dedos.

- Então o senhor veio ajudar Zoe em sua... Busca? - esta parte não havia lhe escapado, e afinal ele recebera a resposta que não havia tido naqueles dias que se seguiram depois da sessão de regressão.

- Eu também tentei ajudá-la como pude. Temo não ter sido muito proveitoso. Vocês se conhecem há muito tempo? Onde se conheceram?

Julien não conseguiu evitar a cara de desgosto quando ouviu a palavra "sofisticado", mas não era culpa de Walter. Ele apenas balançou a cabeça.

- Parece que algumas pessoas se divertem muito me provocando. - ele pensou nas suas últimas interações na mansão.

Mas logo ele deixou essa fala baixo astral de lado, pensando em Zoe. Sorriu.

- É bem a cara dela, mesmo. Ela é uma pessoa muito boa, Walter. Sei que não posso pedir nada a você já que te devo minha vida, ou minha sanidade, por agora há pouco, mas... Se puder, gostaria que você protegesse a Zoe. Caso... Você sabe. Ela encontre o que procura. Não consigo ver isso como algo bom.

Ele ficou meio pensativo, mas então respirou fundo.

- Ok, chega. Minha vida é boa, e eu já estou morto então não quero saber de clima de velório! - Ele sorriu, porque sabia que a frase era totalmente contraditória e não fazia sentido algum. - Sabe o que posso fazer por você? Aposto que está com fome, e quase ninguém precisa comer nessa casa, então eu vou fazer um almoço bem saboroso pra você como forma de agradecimento, o que diz?

- Haha, foi o que eu pensei. - Julien disse, logo levando o rapaz até a cozinha.

Teria o maior prazer em cozinhar algo para quem o havia salvo.

[Continua na cozinha]