O Hall de Entrada

Julien havia passado aquela agradável tarde chuvosa preparando a sua receita de Beignets. Eles podiam não ser tão amanteigados quanto os de Nova Orleans, mas deviam servir. Provavelmente Zoe e Konstantinos gostariam de prová-los. Devia levar pra eles enquanto ainda estavam quentinhos. Preparou uma bandeja bonita e empurrou a porta da cozinha de costas, e estava pensando em qual sabor de chá seria melhor para acompanhá-los quando viu um homem estanho bem na sua frente.

A bandeja logo voou na direção dele, com Beignets sendo mandados por toda parte, e um grito de gelar o sangue ecoou por toda a mansão. Julien se afastou, as costas batendo contra a parede mais próxima, enquanto ele observava apavorado o homem com um pedaço de madeira na mão.

– Quem… QUEM É VOCÊ?!

Julien permaneceu com as costas coladas na parede mais próxima, ainda com uma expressão de absoluto terror no rosto.

– Que sangue todo é esse, senhor? O-o senhor sabe que está aqui é uma propriedade privada, não sabe? Por favor retire-se ou eu vou ter que… Eu-Eu vou chamar a polícia!

Ele tocou o bolso das calças sociais que usava e não sentiu o aparelho perto de si, amaldiçoando baixo por eles estarem na cozinha debaixo de alguma pilha de açúcar ou farinha.

– É sério, por favor, só vá embora! Não posso ajudar você!

Ele decidiu correr para a cozinha, mesmo que para isso tivesse que passar pelo homem, desviando-se de qualquer possível golpe. Deu a volta na ilha, cheia de vasilhas e assadeiras sujas, e procurou em vão pelo aparelho em meio à sua bagunça culinária. O homem logo o acompanhou, e ele encontrou no rolo de massa mais próximo sua arma fiel.

– Nem mais um passo! Eu falei pra ir embora!

- POR FAVOR!- foi o último grito dele.- Você pode só... Me ouvir?

James acompanhara o homem por todo o trajeto, e havia deixado finalmente a barra de ferro suja de sangue para trás. E ali estava ele, de pé diante do rapaz assustado, tentando se encolher em si mesmo e ser menor do que podia. Não queria assustar. Mas não podia deixá-lo escapar.

- Eu estou procurando minha esposa. Mary.- ele segurou o rapaz pelo colarinho, e o que quer que estivesse em sua mão também rezou para que falhasse.- Por favor... você é minha última esperança!

Julien soltou o rolo de massa assim que foi agarrado por James, e então apertou os olhos, fechando-os bem forte, esperando o golpe... Que não veio. Ao invés disso, aquelas palavras, tão desesperadas, tão urgentes. 

– Me solte, por favor. 

O homem fez conforme pedido. Julien ajeitou sua gravata. 

– Não tem ninguém aqui com esse nome, Sr. Sunderland. 

Julien preferiu manter a calma. Precisava descobrir o que estava acontecendo. Não era normal que a névoa trouxesse humanos comuns, como aquele, até aquele lugar. Na verdade, ela sempre os afastava. Mas se algo havia chamado James até ali, ele precisava descobrir o porquê. Notou que ele era americano, pelo sotaque. Mas parecia estar ali ao Norte há algum tempo, porque não tinha um sotaque tão forte ou cheio de gírias. Notou também que ele tinha um corte na testa que minava um pouco de sangue, que escorria pelo lado do rosto. 

Pesou em sua balança moral o fato de que James parecia nervoso e desorientado, e que talvez a própria casa, ou o contato com alguma das criaturas dela poderia ter sido a causadora disso. Seu coração de ouro venceu outra vez. Julien pegou um kit médico pequeno de uma das gavetas da cozinha e disse: 

– O senhor está ferido. Me acompanhe. 

Sentou o americano no pequeno banco no Hall, usado como apoio para calçar sapatos, e começou a limpar as feridas. Da porta, ainda aberta, ele conseguia ver os corpos de dois ghouls que haviam encontrado seu fim naquele pedaço de ferro sendo absorvidos pelas raízes vivas do gramado. 

– O que faz o senhor pensar que a sua esposa Mary estaria aqui? Por acaso ela disse que vinha pra cá?

Julien pegou a carta e leu as palavras rabiscadas,as mãos finas cuidadosamente tocando o papel para que não terminasse de se desfazer. Mas quando a revelação sobre a morte de Mary veio à tona, os olhos do zumbi se travaram no homem. Se era este o caso, então havia realmente alguma chance da mulher estar ali, de alguma forma.

Após sua morte e de se mudar para aquela casa, Julien havia começado a procurar um pouco mais sobre ocultismo, usando os livros da biblioteca, e alguns outros que não se guardavam lá. Ele imaginou que talvez houvessem assuntos ainda não resolvidos com Mary, e mesmo que sua intuição o fizesse se questionar, preferiu continuar ouvindo.

– Aqueles não eram monstros. – ele disse, firmemente, mas em seguida terminou o curativo e, guardando os itens, continuou:

– Senhor Sunderland, o senhor deve estar confuso. Não há nada lá fora. Veja.

Ele apontou para o jardim, onde os corpos dos ghouls já haviam sumido completamente, e a névoa já estava parcialmente dissipada.

– Provavelmente o senhor deve ter se machucado ao pular os muros para cá, batido a cabeça. Ainda mais com tanto stress, com certeza o senhor deve ter se confundido.

Ele travou um pouco quando seu pulso foi apertado, mas gentilmente tirou sua mão.

– Sim, vivo aqui. E estou cuidando do lugar, pouco a pouco. Mas, escute. Se a sua esposa já faleceu, então… Como ela poderia ter te mandado isso? Não poderia ter sido somente uma brincadeira de mau gosto? Como o senhor sabe?


Ele precisava fazer o papel de advogado do diabo, caso escolhesse realmente ajudar aquele homem.

Julien sorriu, agradecido.

– Ah, não massageia meu ego. – Mas em seguida acrescentou:

– Massageia sim – e riu, descontraído.

Meia-noite veio até ele, ronronando e pedindo carinho, e ele o pegou nos braços.

– Bom, acho que é melhor entrarmos. Quero acordar amanhã bem cedo pra começar a extração do óleo essencial e do chá. E você tem muito o que escrever, já que eu falo um bocado.


Kkk


Havia confusão na voz de James. Também havia desespero, tristeza. Culpa. As pessoas não raramente se culpava pelas mortes de seus parceiros, amigos, pais, ou filhos. Mas havia sinceridade em seu olhar. Julien não conseguiria negar o apelo de um homem honestamente desesperado.

– Julien. Meu nome é Julien. Eu vou ajudar o senhor… Vou ajudar você, James. Mas preciso que entenda uma coisa. Eu acredito que o mundo no qual nós vivemos não é a única dimensão que existe na Terra. Se o que está me dizendo é verdade, e se a sua esposa estiver tentando se comunicar com você, saiba que ela não faz mais parte dessa dimensão. E quando a hora chegar, você vai precisar dar adeus.

Ele fechou a caixinha e a colocou sob o braço. Então fechou a porta principal, obscurecendo todo o hall, até que a luz fraca das arandelas laterais esquentasse, e que a visão de James se acostumasse à penumbra.

– Venha por aqui, comigo. – Julien o guiou até o lado de uma cristaleira, sobre a qual um corvo empalhado os olhava com seus olhos negros. O dedo de Julien tocou o bico da ave, cujas narinas eram bem disfarçadas dobradiças e o empurrou para cima, revelando um pequeno botão. Assim que foi pressionado, uma parte da boiserie da parede se desprendeu, revelando uma porta secreta. Ali dentro, a iluminação quente lançava sua luz em um lustre antiquado sobre uma mesa pequena, redonda, com o que parecia ser um desenho bem conhecido na tampa: Haviam todas as leras do alfabeto, os números de 0 a 9 e duas palavras: Hello e Bye Bye.

Julien fechou a porta atrás deles e apontou para uma das cadeiras na mesa. Então se aproximou e tomou o lugar bem em frente a James.

– Já fez uma séance antes?

- Me despedir...?- ele ainda estava em negação.

A ponta de esperança de que Mary ainda estivesse viva era latente, assim como era seu senso crítico que martelava em sua cabeça que aquilo jamais seria possível.
A porta secreta não o ajudou contra o medo, apenas contra o fato de que não deveria estar ali em vão. As coisas só começaram a fazer sentido quando ele viu a mesa. Não lhe era particularmente familiar, mas é claro que ele reconheceria um Ouija se o visse antes.

-... séance?- ele tentou imitar o jeito que o outro falou, e se aproximou mais do rapaz, sem tirar os olhos da mesa.- Você quer dizer... brincar com os mortos?

- Não. Não vamos brincar com ninguém. Vamos conversar. Vamos pedir ao espírito de Mary que apareça e que se comunique, que fale pra você o que ela tanto precisa. Isso certamente vai dar a você e a ela algum tipo de fechamento. O que você acha?

Ele agarrou um pequeno puxador e abriu uma gaveta escondida sob a mesa. Aí dentro haviam velas, incenso e fósforos, e Julien preparou dois de cada coisa.

- Só vou fazer isso se você concordar verbalmente.

- Eu... Você a está tratando como se ela estivesse realmente morta!- ele reclamou. É claro. Para um simples humano, aquilo era muito difícil de entender.- Pare, seu mentiroso! Você é o culpado por tudo isso, não é? Deve ter sido você que me chamou até aqui!- ele delirou.

Cada vez mais nervoso, James não viu quando o movimento do ponteiro se colocou no Hello inscrito da mesa. E em seguida soletrou seu nome. J-A-M-E-S. Precisamente.

Julien ia começar a argumentar, quando notou a queda de temperatura que se seguiu imediatamente após a fala de James. Os olhos do zumbi varreram a sala, como se algum tipo de energia estivesse rondando a mesa.

Ele viu o copo se mover, e estranhou. Algo estava muito, muito errado. Ele nem mesmo havia acendido as velas, o incenso, ou chamado algum espírito!

- Isso é... - ele tentou se levantar, e violentamente suas mãos foram puxadas de volta para a mesa, a cadeira se apertando para que ele não saísse.

- Para! Isso está errado! James, não fale mais nada. Não aceite este contato!

Um vento sobrenatural varreu o quarto, e finalmente o homem podia ver o copo se movendo, formando seu nome.

- Não pode ser ela! - Mas até mesmo o zumbi notou o olhar desesperado de James para o tabuleiro. E enfim, a pergunta fatídica foi feita:

- Quem... quem é você?

E o vento se acalmou. O copo se moveu.

M
A
R
Y