Sala de Estudos

Noralis adentrou a sala sem pensar muito. Ela havia tido um dia cansativo - embora entediante - onde nada que começara a realizar parecia ter recebido um fim satisfatório. Com exceção de ter alimentado as plantas carnívoras quando Julien não estava por perto, certamente alguém agora estava satisfeito naquele lugar.

Hélion não estava em lugar nenhum da mansão nos ultimos dias. Era certo que ela nutria um certo ódio velado pela criatura, mas achava que estava acostumada o suficiente com a sua presença para digamos... sentir falta. Dessa forma, talvez fosse interessante ir até a sala de estudos para gastar um pouco do seu tempo sozinha...

- Ah. - ela não estava sozinha. Deveria ter sentido o cheiro de cachorro a distancia. Provavelmente estava um pouco enferrujada os últimos dias. Seguindo adiante da criatura sentada que lia, ela foi ate um dos poucos livros nas estantes da sala para averiguar sua procedência. - Boa noite.

- Não precisa se incomodar comigo, estou apenas passando o tempo.

A aparência de Noralis era muito comum para uma bruxa de sua estirpe. Com exceção das flagrantes olheiras e de sua constante cara de paisagem, ela pareceria uma garota normal, ridiculamente humana.
Dificilmente alguém que não a conhecesse ou que não tivesse algum conhecimento de magia a reconheceria como algo a mais.

- Boa noite. - ela alegou novamente, olhando dessa vez para o cachorro. Aquilo certamente não era apenas um cachorro, podia sentir só de observar um pouco. Portanto, era melhor agir de maneira educada.

- Fico grata pela gentileza, mas eu entendi.

Folheando vagamente o livro que havia tirado da prateleira, ela voltou seu olhar na direção de Zoe e do cão. Por mais indiferente que fosse, Nora havia aprendido a se comportar para andar em meio a multidão. Ela sabia que não deveria encarar seres vivos como objeto de estudo. Por mais intrigantes que sejam.

- Você tem um caso de possessão ai. Ou seria melhor chamar de convergência?

Seu olhar foi para o teto e depois para os dois novamente.

- Ou alguma forma coisa diferente de magia... embora não consiga imaginar como isso poderia acontecer se desconsiderarmos magia pura e simples.

- Iletrada, mas todos nós somos quando começamos. O que importa é saber quando dar o primeiro passo. E o quanto devemos seguir até encontrarmos o que desejamos.

Para ela, era o caminho todo. Não importava o que, não importava onde, Noralis era esse tipo de pessoa. Normalmente era o tipo que as pessoas comuns julgavam e odiavam. Ela estava mais comportada hoje em dia, mas continuava sendo ela mesma.
A essência se mantém, mesmo quando se passam eras, afinal.

- Nenhum de nós somos... talvez quem sabe O Mestre. - a sombra de um sorriso passou pelos seus lábios com a piada imatura, mas logo sumiu. - Você reconhece a língua em que estamos nos comunicando? Sabe o significado do que eu digo?

- Naturalmente não é meu trabalho angariar membros para uma sociedade mágica ou algo do tipo. Entretanto, considerando sua origem e a desse pequeno aqui, em seu lugar eu teria interesse em me aprofundar no assunto.

Nora caminhou até a mesa e apoiou seu livro sobre ela. Então ela agachou-se no chão, ficando dessa forma praticamente emparelhada com o cachorro. Seu olhar era bastante sério - até mesmo um pouco curioso, como se estivesse lidando diretamente com uma pessoa e não com um cão que aparentemente estava com uma alma vinculada ao corpo.

- A memória dela... você tem sincronizado para conseguir compreender o mundo ao seu redor? Isso faz bastante sentido. - ela levantou minimamente sua cabeça para observar Zoe e retornou-a para baixo. - Uma pena, porém. Convenhamos que norueguês é uma lingua complicada de se entender.

Sua cabeça pendeu para um dos lados.

- Me fale mais. Não sinto apenas uma alma nesse corpo. São duas? Ou alguma outra coisa muito próxima de uma alma?

Nora fechou os olhos e inclinou a cabeça para um dos lados. A trança chegou a encostar no chão, mas se a bruxa estava incomodada com qualquer traço de poeira em seu cabelo, não demonstrou.

- Tudo nesse mundo é uma questão de processos, isso para ciência, isso para magia. Algumas pessoas nascem com aptidão, mas se você não tem nenhuma... acredito que deva começar dessa forma...

Ela caminhou novamente ate a prateleira, enquanto, ao mesmo tempo que parecia buscar algo com a ponta de seus dedos, parecia estar prestando atenção ao que o cão (ou Konstantinos) dizia.

- Se formos considerar imprevistos e acidentes, nenhum de nós deveríamos estar. A vida - seja ela de qual forma for - é uma coisa engraçada. Um conjunto de sistemas, mecanismos, e alma. Ou almas. Efetivamente é tão breve e frágil como uma folha soprada pelo vento.

Após mover seu dedo indicador pelas capaz, ela parou em uma especifica e puxou-a para fora da prateleira. Era um livro de capa marrom e não parecia ter nada de mais como conteúdo. Nem um pouco glamouroso, mas por que falar em glamour quando ela própria já não tinha nenhum.

- Falam muito sobre ordem e caos nesse mundo mas o que prevalece é o caos. E é ele que torna as coisas mais interessantes. Não importa se você é fruto de uma alma ou mil, o que é realmente importante é a vida que leva enquanto caminha pelo mundo. - ela esticou o livro então para Zoe. - Conhecimentos básicos de magia. A teoria é o mais importante quando não se pode partir imediatamente para a prática.

- A ordem dos fatores não altera o produto. Eu sei, já que sou o tipo de pessoa que não mede meios para chegar a um fim.

Nora moveu sua cabeça para observá-lo por cima do ombro. Havia um que de perturbador no curto sorriso que abriu ao dizer aquilo. Mas também havia algo próximo a um desespero. Muito profundo e difícil de encontrar a origem.

- Leia toda a primeira parte e então me pergunte se houver alguma duvida. Irei verificar se conseguiremos ter uma ideia de sua afinidade com a magia e qual tipo de amuleto seria mais interessante para te ajudar.

Seus olhos piscaram, e ela retornou a poltrona, sentando-se elegantemente. Apesar de simples em suas vestes e trejeitos, havia algo majestoso na maneira de Noralis se portar. Ou talvez seja a sua idade refletida em seus gestos.

- Bem é de se entender que ela seja um motivo de interesse, mas o que você pode ver de atraente em uma bruxa do meu calibre, não consigo imaginar.

- Por volta da página 20 acredito que tenha um encantamento de tradução que te interesse para lidar com seu... companheiro.

O porquê dela ter dado aquela pausa era difícil dizer. Cruzando as pernas, ela passou a trança pela frente do corpo e pôs-se a brincar com a ponta dela, enrolando-a em seus dedos muito finos.

- De fato. Não irei negar porque é uma verdade. Porém quando se vê demais não sobra nada para se buscar. Você já ouviu um ditado interessante, Konstantinos... se é que posso chamá-lo desse jeito? - fechou os lábios, aguardando pela resposta, e então continuou. - Coelhos morrem de solidão.

- Ele de fato parece.

Encolhendo os ombros, Noralis vislumbrou com o canto de sua visão a criatura afastar-se para ler. Era interessante, apesar de não conseguir ver muito do rosto dela por conta da máscara, quase pode vislumbrar m brilho em seu olhar.

- Minha maldição tem outro nome. Chamasse tempo de sobra. Ou se você quer uma palavra mais bonita, eternidade. Qual é o ponto de se viver "para sempre" se chega um momento em que não há nada novo para descobrir?

Ela olhou novamente para Zoe com um que de amargura.

- Nós somos claramente diferentes. Essa criança não conhece muito do mundo... e deseja conhecer. Mesmo sendo o que é, tem mais coração do que eu já tive e jamais terei.

Ela encarou o cachorro em seu colo por alguns instantes. Já sabia para onde ia aquela conversa antes mesmo dele recomeçar a falar, mas era de se esperar esse tipo de reação. Era o tipo de coisa que todos diziam, de maneiras diferentes.

Como Noralis era uma especialista, ela simplesmente aceitou que ele estivesse em seu colo e aceitou aquela aposta. Não como se realmente esperasse que aquilo aliviasse seu tédio, mas porque no fundo ela estava sempre em busca de algo interessante para fazer, e Zoe pareceu-lhe ser interessante o suficiente para isso.

- Essas coisas não importam. - ela deu de ombros com suavidade, e inclinou a cabeça. - Mas se é algo que vai tirar meu tédio, não me importo de tentar. Os fins justificam os meios, não importa o que.

- Grande plano, é? Eu não vejo esse mundo como algo que tem o minimo de ordem por trás. O "Grande Plano" é mais um amontoado de acasos e decisões ruins. Que eventualmente podem suceder em algo bom, e não necessariamente bom para todos.

Ela encarou o vulto de Zoe lendo a poucos metros de distancia e deu vagamente de ombros.

- Bem, ela parece ser suficientemente emocionada, o que já é algo. A maioria das pessoas aqui é como eu. Ou gostam de coisas peculiares demais para o meu gosto. - ela atirou a trança de seu cabeço vagamente sobre as costas, pondo-se a cruzar as pernas. - O fim chega para tudo e todos. Chegará para ela, chegará para você, e eventualmente, chegará para mim.

- Se você deseja tanto acreditar em algum ser que controla as coisas por trás dos panos, ou qualquer força cósmica nesse sentido, bom pra você.

Cética como Noralis era - algo que não condizia muito com o fato dela ser uma... bem, bruxa - ela tendia a ser pessimista. OU talvez realista em um modo extremo.
Para ela as coisas aconteciam por mero acaso, e normalmente o acaso não tendia a caminhar para algo bom. Muito pelo contrário, normalmente as coisas que se seguiam eram bem ruins.

- Desgosto, desespero, negação, as pessoas nunca aceitam o fim. Mas não sabem também que o que dá valor a vida é a morte. - ela franziu o cenho e encarou-o, ainda em seu colo, com um olhar cético. - E veja bem onde terminou, esse corpo pequeno não lhe parece inconveniente?