A estufa de Julien

A tarde já estava no fim quando Julien, acompanhado de Zoe e Konstantinos, abriu a estufa. Ela nunca ficava trancada, mesmo com algumas vinhas se provando um pouco ativas demais à noite. Julien deixou o cãozinho no chão e abriu mais a porta para Zoe.

- Então, aqui é a minha estufa. Eu chamo ela de minha, mesmo sem ter esse direito, mas acho que ninguém se importa.

Uma enorme variedade de plantas, flores, arbustos e trepadeiras estavam por toda parte. Uma longa escada estava apoiada em um dos cantos para alcançar as plantas mais altas, e um discreto e bonito sistema de canos finos de latão se camuflava na estrutura provendo umidade para as plantas mais altas. O local todo tinha uma temperatura consideravelmente maior do que a do lado de fora, ainda mais pela mansão sempre estar envolta em um ar meio outonal e invernal. Mas ali dentro, parecia uma grande floresta, com potes e canteiros pouquíssimo visíveis sob toda aquela exuberância vegetal.

- Nessa parte mais seca ficam as suculentas, já as tropicais ali naquele canto, onde é mais úmido. O fundo é um pouco mais frio, então algumas mais sensíveis ao calor ficam por lá. As carnívoras estão logo à esquerda, não vá por lá Konstantinos, por favor.

- Esse lugar é incrível, Julien!

Apesar de ser uma pessoa bem viajada, haviam muitas plantas ali que Zoe só havia visto em livros. E algumas que ela nunca vira em lugar nenhum. Era realmente impressionante a forma como todas conseguiam se manter vivas naquele lugar, ainda que ela imaginasse que havia algum tipo de toque mágico no lugar isso definitivamente não diminuía em nada o fato de que Julien conseguia tomar conta de todas aquelas plantas.

- Konstatinos, fique com a gente. - falou Zoe, batendo duas vezes em sua perna. Konstantinos latiu para ela. - É... uau. Você fez um trabalho incrível aqui, Julien!

Ele sorriu, timidamente, e se tivesse algum sangue sendo bombeado em seu corpo, ele teria corado. Ficava sem jeito com elogios, mas agradeceu. 

- Ah, que isso... Eu só gosto de dedicar tempo a elas, é só. Aqui é bem silencioso, tá vendo? Só o som dos sprinklers que eu fiz ali em cima, e algum inseto bonzinho que deixo ficar pelo bem das próprias plantas. Não tenho direito de impedir que vivam, é o ciclo da vida né? Por mais que a minha existência renegue isso.

Ele tocou uma folhinha seca que então se desprendeu e flutuou lentamente até o chão.

- Sempre que precisar de algum lugar pra descansar os pensamentos, pode vir pra cá. O máximo que pode acontecer é estar tocando música clássica pras tropicais. Ou alguma canção de ninar para as carnívoras, se eu as estiver alimentando.

- Um lugar para relaxar... bem, eu tenho a sala de estudos. Mas é bom trocar de ambiente de vez em quando. - Zoe sorriu para Julien.

Konstantinos se mantinha ao lado deles, porém não era certo dizer que ele estava sendo obediente. Era mais como se a presença dele ali fosse uma pura coincidência e que os três apenas se encontraram ali aleatoriamente, entretanto ele acompanhou ambos até ali. Konstantinos fazia o que bem entendia desde sempre, mas desde que chegou naquela mansão ele começou a mudar um pouco de atitude, ficando mais solto e visitando vários dos locais da mansão. Sempre voltava à noite para dormir com Zoe, mas era comum que passasse horas inteiras desaparecido, vasculhando cantos da mansão, conversando com os seres que ali habitavam.

- Farei questão de vir aqui.

A próxima fala de Julien foi interrompida por um barulho alto bem ao lado dele. Um gato grande, de pelagem escura e orelhas altas sibilou, olhando para Zoe e Konstantinos.

- Meia-noite! Não faça isso! Mau garoto.

O gato grunhiu, mas se acalmou quando Julien acariciou sua cabeça. Era um gato realmente grande, com um olhar inteligente, que balançava a cauda de maneira inquieta.

- Desculpem por isso. Ele é assim com gente nova. Esse é meu gato, Meia-noite. Ele geralmente fica aqui na estufa ou nos jardins. E geralmente não é tão mal educado.

O gato miou como se reclamasse da fala do zumbi.

Meia-noite:

- É normal que ele se assuste, eu não sou a mais natural das pessoas. E bem, temos um cachorro aqui.

Zoe apontou para Konstantinos que bocejava, parecia mal ter registrado a presença do gato, estando muito mais interessado nas plantas que haviam ao seu redor. A gigante apenas torcia para que ele não acabasse mijando em algum dos potes de planta de Julien, mas agora que parava para pensar, nunca vira Konstantinos tomando conta das suas necessidades naturais, algo que ela própria e outros experimentos precisavam fazer. Curioso, mas não o suficiente para ela sair falando abertamente sobre. Se o cão não precisava urinar e nem defecar, então isso era ainda melhor para ela, visto que não teria que limpar nada.

- Seu gato é bem bonito.

- Ah, obrigada. Ele concorda com você. - Julien deu um riso meio sem graça, ainda tocando o animal. Meia-noite por sua vez estava encarando Konstantinos como se ele fosse realmente outro gato, ou como se estivesse ainda decidindo que criatura era aquela. O típico concurso de encarar que gatos gostam de fazer quando vêem outros. Julien notou e pegou um pequeno saquinho de pano de uma das gavetas e mostrou para ele, e logo aqueles olhos felinos já se expandiram.

- É isso que você quer, não é?

Ele usou a pata para derrubar o saquinho da mão de Julien e logo brincava alegremente em um montinho de erva de gato.

- Onde estávamos? Ah, sim, mudança de ares. Venha sempre que quiser. Eu costumo ter limonada gelada sempre ao dispor.

Ele sorriu.

- Já ouviu falar de papoula, com certeza né? Mas já ouviu falar de papoulas negras? - Ele perguntou.

- Não, o que é a papoula negra?

Se perguntasse para Zoe o que era uma papoula, Julien certamente receberia uma enxurrada de informações que já sabia, desde como a planta era até a família dela no reino Plantae (que no caso é a Papaveraceae). Mas apenas por ter adicionado um diferencial ao que Zoe já sabia ele havia conseguido atrair a atenção dela por completo, havia algo infinitamente interessante em ver a forma como certas coisas se diferenciavam através da língua. Papoula invocava uma certa imagem na cabeça de Zoe, já papoula negra invocava uma incógnita. E Zoe precisava solucionar todas as incógnitas que encontrava.

- Por aqui. - ele a levou pela estufa até chegarem a uma parte nos fundos, onde um arbusto pequeno, encoberto por uma cúpula de vidro, com apenas três flores que, em tudo, exceto pela cor, era igual uma papoula vermelha comum.

- Como você sabe, o ópio é extraído das papoulas comuns. Estas aqui aparentemente produzem um outro tipo de substância, que tem um efeito muito mais forte, sobretudo em seres sobrenaturais. Noralis é quem me falou sobre. Quando se ingere essa substância, você tem a possibilidade de acessar memórias, eventos do passado, com mais facilidade. Claro, você não pode mudar nada, mas existem coisas no nossos subconsciente que nós sabemos sem saber que sabemos. E muitas vezes, é aí que estão algumas respostas.

Ele sorriu para ela, animado.

- Se me der cerca de três dias, eu consigo produzir o chá que vai permitir a você transcender sua memória, e trazer alguma iluminação sobre o que você procura, talvez. Não posso dar garantias, mas ela está dentro do vidro porque somente seu cheiro já pode causar visões. O que acha, Zoe? Gostaria de tentar?

- Eu...

Zoe parou para pensar, após ter seguido Julien e ter ouvido tudo o que ele tinha para dizer. Aquilo parecia ser exatamente o que ela tanto procurou, sempre sentiu como se certas respostas estivessem na ponta de sua língua ainda que não fosse capaz de dizê-las. Com aquilo ela poderia se compreender melhor e compreender melhor o mundo ao redor de si. O mundo que girava com ela e que continuaria girando sem ela. O mundo em toda a sua maravilha. Pois, como dissera Walter certa vez: De nada adianta tentar conhecer o mundo sem primeiro conhecer a si mesmo. Ela sabia que parte do raciocínio vinha de Aristóteles, mas era uma visão bonita e que ela adoraria seguir.

- Eu adoraria, Julien. Por favor, tem como fazer isso para mim?

Ele sorriu docemente.

– Mas é claro que ajudo. Espero mesmo que dê certo. Só preciso de alguns dias. Ah.

Ele abriu algumas gavetas, olhando aqui e ali até que achou um caderno com uma capa de couro marrom que entregou a ela.

– Você sonha? Nestes três dias, vai ser importante que você escreva os seus sonhos neste caderno. Você poderia escrever em um celular, ou algo assim, mas achei isso mais a sua cara.

Ele estendeu o caderno para ela.

– Se quiser escrever seus pensamentos, suas impressões, pode fazer isso também. Isso pode ajudar a compreender melhor o seu presente, para que não se perca ao olhar para o passado.

- Isso é mais a minha cara mesmo. Até porque não sei usar celulares. - Zoe pegou o caderno de Julien e sorriu.

Zoe sentia-se grata por Julien, por ter conhecido-o, por ele ser quem ele era. Que nunca mudasse. Ele era o tipo de pessoa tão cheia de açúcar que para a maioria ele seria doce demais, mas para Zoe ele era apenas um querido, alguém que ela queria bem. E pensar que tinha acabado de conhecê-lo e já estava pensando assim, era tão interessante a forma como criaturas sobrenaturais tinham esse impacto nela. Talvez fosse por ela própria ser sobrenatural, não no sentido mágico, mas por estar tão longe do que era natural no ciclo da vida que se soltou da roda da vida.

- Farei tudo isso. Que tal eu começar escrevendo sobre esse amigo querido que fiz hoje?

Julien sorriu, agradecido.

– Ah, não massageia meu ego. – Mas em seguida acrescentou:

– Massageia sim – e riu, descontraído.

Meia-noite veio até ele, ronronando e pedindo carinho, e ele o pegou nos braços.

– Bom, acho que é melhor entrarmos. Quero acordar amanhã bem cedo pra começar a extração do óleo essencial e do chá. E você tem muito o que escrever, já que eu falo um bocado.

Havia chegado o dia quando fariam aquele pequeno experimento de Julien, nos últimos dias Zoe havia feito alguns registros de seus sonhos, assim como de seus pensamentos e observações. Nada muito complexo, afinal ainda era algo completamente novo para ela e seus sonhos eram relativamente comuns, coisas como estar de volta no laboratório, mas ele estar vazio. Em um ela estava em uma floresta, caminhando e tentando encontrar Konstantinos que fugira para dentro dela. O terceiro fora o mais interessante, ela estava dentro da mansão, caminhando na direção da sala de estudos quando algo passou correndo pelo lado dela, mas ela não conseguia reconhecer o que era. Quando tentou perseguir notou que não conseguia mover suas pernas e aquela coisa que passara por ela estava voltando na direção dela e ela era rápida. Muito rápida. Ela acordou com o coração na boca quando o ser chegou perto de tocá-la.

- Julien? - ela chamou, entrando na estufa.

– Aqui atrás! – a voz de Julien veio do fundo da estufa. Naquela parte, onde estavam as plantas tropicais, era mais quentinho, e o rapaz havia preparado um aparato especial para aquela experiência.

Encontrando uma coisa aqui e ali em seu quarto e pela propriedade, ele havia montado um espaço para fazer o experimento. Uma cama que parecia bem confortável, embora simples, uma mesinha sobre a qual estava um metrônomo, uma jarra com água e dois copos, alguns símbolos místicos com inscrições ao redor, um microfone, uma câmera e um pequeno notebook, onde Julien aparentemente estava fazendo notas sobre a planta e o processo que envolveu a extração do óleo essencial da Papoula Negra, com fotos e diagramas. Ele havia realmente levado a sério aquele projeto, e talvez agora estivesse começando a se questionar. Ficou meio sem jeito quando viu a amiga chegando, com as roupas confortáveis que ele havia pedido, e sentiu a necessidade de se explicar.

– Então, isso tudo é porque… Bem, é minha primeira vez fazendo isso e se for te ajudar, quero entender todo o processo. Aqui.

Ele mostrou um pequeno frasco com um líquido negro semitransparente e viscoso. O frasco em si não possuía mais que três centímetros de altura, mas Julien parecia satisfeito.

– Aqui está o elixir dos sonhos. Eu cuidei pra que fosse bem sanitário, pode ficar despreocupada. Uma única gota no seu chá, e vai poder ver as coisas com mais clareza, espero. Como se sente?

- Olá!

Zoe se aproximou, vestia-se de maneira confortável como Julien havia pedido, ao invés da venda que sempre usava ela usava uma máscara de dormir para cobrir os seus olhos. Ela estava realmente impressionada e grata com a seriedade que Julien levara aquele projeto, afinal era algo importante para ela também.

- Obrigada por ajudar, Julien! - Zoe abriu um sorriso doce, ou o mais doce que poderia ser, e sentou-se na cama. Obviamente ela era maior do que a cama, mas já estava acostumada e isso não iria atrapalhar. Ela colocou o líquido do frasco em seu chá e olhou para Julien. - Bom, lá vamos nós!

Ela tomou o chá e deitou-se, fechando os olhos e suspirando. Por um momento, nada aconteceu. Então os sons foram se tornando mais distantes, a voz de Julien pareceu se arrastar e afastar e por último ela escutou um miado de gato, até que afundou-se completamente em seus sonhos.

Estava no que parecia ser uma academia, nunca estivera dentro de uma, mas já vira elas em filmes e séries. Erguia e abaixava uma barra enquanto estava sentada, os pesos ao lado eram enormes e ela sentia os braços quase gritar com o esforço. Atrás dela estava um homem, auxiliando-a a erguer e abaixar a barra. Ela colocou a barra de volta no apoio e suspirou, sentando-se e olhando para o espelho. Exceto, que não era ela.

Tratava-se de um homem, alto e grande, com músculos por toda a parte. Ele colocou uma das mãos sobre o peitoral e sorriu, satisfeito. Olhando para o espelho mais uma vez ele viu seu amigo virar-se para falar com alguém. E então uma névoa vermelha ergueu-se ao redor da cabeça do companheiro enquanto ele ia ao chão. Zoe levantou-se e virou-se para olhar para quem mais estava ali e a última coisa que viu foi um par de olhos amarelos avançando em sua direção.

De volta no mundo real, Zoe tremia e gemia. Não chegava a formar palavras, muito menos algum som que fizesse sentido, embora Julien pudesse reconhecer que em algum momento ela fez um som bem reconhecível: o de uma pessoa se afogando em algo.

Assim que Zoe fechou os olhos, Julien deu início à gravação. Ele não havia conseguido outras pessoas para que tivesse como comparar a experiência, mas começou com um script de hipnose que havia encontrado na internet.

As perguntas visavam compreender melhor o ambiente no qual o Sonhador estava visualizando, e a partir daí ter a descrição em primeira mão da visão. Zoe deu detalhes ótimos, até o momento em que ela começou a convulsionar. Julien apoiou a cabeça da moça e segurou suas mãos.

- Zoe. Zoe, você está bem. Eu estou aqui, é o Julien.

Vendo que ela não respondia, ele usou sua contramedida. Um extrato de uma planta com um cheiro muito forte, que poderia ajudar a cortar o efeito da Papoula Negra. Ele aproximou o extrato do nariz de Zoe, e esperou que ela o inalasse. e por fim se livrasse do transe.

- Os Filhos Esquecidos... - murmurou Zoe, enquanto estava em seu transe.

Suas visões foram aos poucos mudando, mostrando várias e várias pessoas em diversas situações sendo atacadas por esse ser de olhos amarelos. Uma mulher que caminhava em um parque pouco antes de anoitecer, um socorrista dentro de uma ambulância sendo atacado pelo suposto paciente, uma ginasta que praticava seus movimentos no quintal de sua casa. As visões começaram a se acelerar e Zoe já não conseguia mais acompanhar, porém mantinha-se presente a visão dos olhos amarelos logo antes da mudança de cenário. Ela conhecia aqueles olhos, já os vira antes... Mas onde?

Zoe despertou, sentando-se com a velocidade de um raio. As faixas que cobriam seus olhos caíram de tanto que ela se debateu e da forma como ela se levantou e Julien poderia ver os olhos dela. Dourados. Não era um dourado belo, como aquela cor especial que se forma quando o sol de põe no horizonte. Era uma cor doentia, que parecia pulsar com uma energia estranha que deixaria quem olhasse demais para eles com o estômago revirado. A mulher, notando o que aconteceu, rapidamente pegou a faixa e passou-a para tampar os seus olhos.

- Eu vi... - Zoe tremia. - Eu vi ele... Adam.

Julien foi pego de surpresa pelo olhar paralisante de Zoe, e seus olhinhos verdes piscaram algumas vezes, um pouco intimidados. Ele segurava seus ombros largos, e na tela do computador, a gravação ainda continuava rolando. Ele segurou suas mãos quando ela pegou as faixas. Certamente ela não precisava de compaixão, mas às vezes é importante conhecer alguém que não desvia o olhar.

- Ei, tá tudo bem. Pode colocá-las se você se sente mais confortável, mas se não quiser eu não me importo. Estamos juntos nessa, Zoe. - ele garantiu.

- Você viu Adam... Quem é Adam?

- Não não não. - Zoe falou errática, terminando de dar o nó em sua venda.

Não era desconfiança. Era puro desconforto. A verdade era que Zoe detestava os seus próprios olhos, a coloração esquisita, a forma como eles eram cadavéricos e, principalmente, o fato de que eles enxergavam demais. Era difícil para Zoe explicar exatamente o que ela enxergava, mas ela sabia que era mais do que um humano normal e até mesmo mais que outras criaturas mágicas. Ela conseguia ver coisas que não deveriam ser visíveis ao olhar nu, via seres que desejavam não serem vistos e por vezes enxergava até mesmo a forma como a magia, em sua natureza invisível, se movimentava ao ser manipulada.

- O primeiro. - ela respondeu. - Lembra o que eu falei sobre Frankenstein? Sobre como meu criador tentou fazer o que estava no livro muito antes dele sequer ser publicado? Foram feitas várias tentativas, porém ele as via como falhas, mesmo tendo criado vida. Adam é um deles. O primeiro que desenvolveu consciência própria. O primeiro que escapou.

Zoe tentou controlar a respiração acelerada.

- Quando ele me criou... Álmos decidiu que era melhor cultivar uma mente ao invés de permitir que eu ganhasse uma aos poucos. Acho que ele pensou que seria mais fácil me controlar assim. Adam... - Zoe tossiu violentamente. - Adam está vivo. Em algum lugar. Sempre pensei que ele tivesse morrido. Eu fui a primeira que não precisou de cuidados especiais para continuar viva. Mas vendo o que vi... tenho certeza de que ele está vivo.

- Ah, mon dieu... - Julien disse, passando a mão nas costas largas da amiga e oferecendo a ela um copo de água.

- Você disse que via algumas pessoas sendo atacadas, nas suas visões. E olhos amarelos, certo? Será que ele...

Ele não queria supor, mas precisava considerar a possibilidade.

- De que cor eram os olhos de Adam, Zoe?

Zoe tomou um pouco de água com certa dificuldade, mas não conseguia se manter parada. Levantou-se e começou a deslocar-se de um lado para o outro, enquanto considerava todas as possibilidades. A verdade era que o que Julien estava evitando pensar foi a primeira coisa que Zoe levou em conta. Poderia ter sido ela. Algumas memórias reprimidas talvez? Ou algo que toi aoagado para tentar evitar que ela soubesse demais. Mas tudo isso ia por água à baixo quando ela olhava para si mesma.

- Não sei ao certo, nunca o vi. Mas ele era parecido comigo, ao menos era o que Álmos dizia. - Zoe parou, olhando para Julien - Essas memórias não são minhas, Julien. São deles.

Ela abriu os braços e indicou o corpo inteiro.

- Eu... Álmos sempre registou que havia tirado as partes do meu corpo de pessoas mortas, mas... Acho que ele fez Adam matar elas para pegar o que ele queria.

Julien se calou, pois às vezes nenhuma palavra é o suficiente pra acalentar um coração. Zoe parecia tentar digerir tudo aquilo, e a revolta era compreensível e justificada. Ser uma criatura morta-viva já era ruim o suficiente. Descobrir que o seu corpo era feito de partes humanas tiradas à força, literalmente fruto de assassinato... É, ela precisaria de algum tempo.

Julien parou a gravação, e enfim se levantou. Foi até ela, e manteve-se fora de seu espaço pessoal. Ainda assim, quando achou oportuno, quebrou o silêncio.

- Zoe. O que você pretende fazer agora?

- Eu... não sei.

Aquelas duas palavras saíram praticamente sussurradas, conforme Zoe se sentava na cama e colocava-se a olhar o vazio. O que poderia fazer? Não sabia onde Adam estava, não sabia onde Álmos estava, se é que ele estava vivo ainda. Ela acreditava seriamente que vaso ruim não quebra fácil e como seu criador estava pesquisando a imortalidade, talvez... Não, mesmo que soubesse onde eles estivessem, o que iria fazer? Conversar com Adam? Matar Álmos? Nada disso iria resolver algo, nada disso lhe traria algum tipo de satisfação. Na verdade aquela situação toda lhe trouxera duas coisas: angústia e incerteza.

- Eu realmente não sei. - Zoe olhou para Julien. - O que eu devo fazer?