Quarto do Julien

Apenas uma escrivaninha estava agora um pouco livre de todos os objetos do quarto. No lugar, um conjunto de tintas, alguns pincéis, um pouco de linha e uma tesoura estavam colocados, enquanto os dedos finos de Julien davam os últimos retoques no objeto central: Uma pipa, grande e vermelha, em um formato que lembrava um dragão chinês, e que havia estragado uma parte da cauda quando caiu no jardim. Julien apertou o nó na linha ao redor da vareta de bambu, deixando-a segura e cortou o excesso com a tesoura. Com um último retoque tocou a seda com o pincel e a tinta vermelha, cobrindo a última imperfeição.

Ele deixou a pipa sobre o suporte e sorriu. Mais um pequeno projeto terminado. Começou então a limpar e secar os pincéis, cantarolando junto com a canção que soava da vitrola ao seu lado.

https://youtu.be/ZleODPo7mK8?si=OH94JSBttcurMZgl

Julien ergueu os olhos para a porta e prontamente se levantou, tirando o avental sujo de tinta que protegia sua blusa de botão e o colete escuro. Ele olhou pelo olho mágico e não viu nada, apenas a escuridão.

Sacudindo a cabeça, ele se perguntou se seus olhos haviam sido comidos por vermes e olhou novamente. Nada além de uma parede preta. Ele abaixou a maçaneta ornada de latão e abriu a porta, finalmente solucionando o mistério. Seus olhos subiram, subiram, subiram um pouco mais até encontrarem o elmo com rosto de leão. A altura abaixo da média do morto-vivo ficou ainda mais evidente perto daquela sombra imponente.

A surpresa e o breve assombro deram lugar ao mais sincero sorriso de Nova Orleans.

- Oi! Como posso ajudar você?

Julien não pareceu se importar nem se intimidar com o silêncio que outros poderiam julgar como constrangedor que se seguiu após aquela breve e inicial troca de palavras. Ele mesmo não era a melhor pessoa para gerenciar o tempo que passava observando paisagens, artes, objetos ou pessoas. Aproveitou aqueles minutos para notar bem cada aspecto do elmo. Ele parecia ter sido fundido, já que a juba do Leão parecia um trabalho impossível mesmo para o mais habilidoso ferreiro, sem deixar marcas de junção nem de lixamento. Era de um material amarelado, como ouro, mas parecia bem mais resistente que latão. Uma longa plumagem rubra saia do topo, e mesmo que as vestes negras e discretas não combinassem com o monumento chamativo que havia na cabeça, o conjunto da obra, somado à altura descomunal, deixou mais que claro para o cérebro desmorto de Julien que aquela pessoa gostava bastante de chamar atenção. Ou pelo menos foi o que ele deduziu.

Quando ela retomou a conversa, ele alegremente assentiu, sorrindo.

- De forma alguma! Por que não entra? - ele deu um passo para o lado, deixando a porta escancarada. - Posso te oferecer um pouco de chá, ou café?

Ele preparou rapidamente duas das poltronas que haviam ali, próximo a uma mesinha de onde um abajur ornado com bordados estava aceso, e um par de xícaras aguardava como se estivesse sido especialmente preparado para isso.

- Você chegou no começo da semana, certo? Acho que me lembro do dia. Consertei a porta do seu quarto, mas você não estava lá!

Julien só conseguiu discernir o que era Konstantinos depois que este parou sobre a poltrona e... Latiu? Se é que se podia dizer que aquilo era mesmo um latido. Ele gostava de cachorros, embora os cães da proprietária de seu antigo apartamento no Garden District, dois pinscher que tremiam como britadeiras e odiavam qualquer humano que não fosse a Senhora Depardieu tinham a péssima mania de morder os calcanhares do rapaz se ele ousasse cruzar seu caminho ao tentar chegar em casa. O desmorto preferia não levar pro coração.

- Não é problema algum! Mas é um cachorro bem curioso! Que... Idioma é esse? - estranhamente sua atenção não foi para ''Por que diabos este cachorro está falando???''

O rapaz fechou a porta depois que Zoe entrou, e aquele lugar, mesmo abarrotado de coisas, parecia ter ficado um pouco maior, já que a mulher nem parecia tão evidentemente imensa sentada.

- Ah! Não me apresentei, Zoe. Sou Julien Arquette, muito prazer. Cuido de algumas coisas por aqui, do jardim e reparos em geral. - ele ofereceu sua mão.

- Eu não faço a menor ideia, mas ele parece só falar esse idioma. Eu até teria procurado saber, mas pode ser qualquer uma.

Zoe sabia como havia sido o experimento que criara Konstantinos, ainda que não soubesse exatamente o que fora feito. Apenas que ele era duas almas em um corpo só. Logo a alma dominante deveria ser a que falava, mas por ser uma voz de criança... seu criador era realmente revoltante, utilizando de uma criança e um cão para seus experimentos. Afastou esses pensamentos, não faria bem se irritar agora e principalmente quando estava de frente com Julien que parecia ser uma pessoa bondosa. Ele não merecia ter que lidar com Zoe enquanto ela reagia aos traumas e injustiças que permeavam a sua mente.

- O prazer é todo meu! - Zoe apertou a mão de Julien. - Obrigada por consertar a porta do meu quarto, a propósito!

- Por nada, não se preocupe. - ele disse, abrindo a portinhola do pequeno fogão antiquado que havia ali e fazendo as chamas crescerem. O bule já estava sobre um buraco em cima. Realmente havia de tudo naquele quarto.

- As dobradiças aqui estão velhas, então pode ter sido mau jeito quando você a abriu. - Força descomunal? Não, certamente era mau jeito. Julien assentiu, olhando pro cachorrinho. E se sentando na poltrona ao lado para aguardar a água ferver.

- Depois deveríamos usar o Google Translate. Ele morde? - ele havia levantado a mão, mas parou para conferir se deveria mesmo acariciar a cabeça do cão.

- O que é Goog... Google Translate? - Zoe, como alguns poucos sabiam, era uma analfabeta tecnológica. Ela não sabia como operar certas coisas, desde coisas simples como um celular até coisas mais avançadas, como um carro. Na verdade ela nem cabia dentro da maioria dos carros, mas o único que serviu, uma caminhonete enorme, acabou sendo totalmente destruída. - Não, ele não morde.

Konstantinos se mantinha bem comportado em volta de outros, apesar de suas tendências caóticas. Era como se soubesse que essas pessoas o adoravam apenas por conta de sua aparência fofa e simpática. Quando Julien o acariciou o cachorro fechou seus olhos e colocou a língua para fora, se divertindo com o toque. Como Zoe bem sabia, ele era extremamente folgado quando se tratava desse tipo de coisa. Adorava carinhos, adorava atenção e, acima de tudo, adorava ser tratado como um rei mesmo sendo um Shiba Inu de olhos verdes.

Julien sorriu, afagando o bichinho.

- Google translate é um tradutor simultâneo no celular. - ele puxou o seu do bolso traseiro e a tela se acendeu. Depois de alguns toques ele colocou o aparelho perto de Konstantinos. - É só latir... Falar, e ele traduz na hora.

A carinha fofa que o animalzinho fez era de derreter corações, e Julien perguntou:

- Tem algo a dizer, coisa fofa?

- dukke - falou Konstantinos, a voz infantil ressoando pelo quarto.

O celular de Julien reconheceria a língua que ele falava como norueguês e a palavra em questão como "boneca". Não passou despercebido por Zoe que era aquilo que aquela era a palavra que ele sempre usava quando tentava se comunicar com ela diretamente. Era algo que estranhamente combinava, uma vez que Zoe era realmente como uma boneca, costurada à partir dos pedaços destroçados de outras bonecas e bonecos. Aquele cãozinho parecia ser bem mais esperto do que ela imaginara e isso que Zoe acreditava que Konstantinos era um dos seres mais espertos que ela já conheceu.

- Norueguês, é?

- Parece que sim! Boneca, que fofo. - ele ficou pensando. - o que foi mesmo que ele disse quando entrou aqui mesmo? Acho que era... Vandôde? - ele repetiu a pronúncia, e logo a resposta apareceu na tela.

- Ah! Ele é realmente muito esperto! Nem todo mundo percebe isso de primeira.

Ele sorriu, e se perguntou se Zoe havia notado. De toda forma, com a ajuda do Dr. Jackal, ele tinha a aparência mais humana possível.

- É que, Zoe, eu sou um... Zumbi. - ele sorriu timidamente. - Por favor, não saia correndo. Ele abaixou um pouco a cabeça e olhou para ela por baixo dos cílios longos, como um filhote culpado, aguardando sua reação.

- Por que eu sairia correndo?

Zoe já interagira com todos os tipos de seres sobrenaturais em seus longos anos de vida, porém ficava claro que Julien era de longe um dos mortos-vivos em melhor estado que ela já vira. Geralmente havia alguma coisa que indicava que estava interagindo com um zumbi, mas não fosse os olhos de Zoe ela jamais teria notado o que aquele rapaz era. Para retribuir a honestidade, Zoe tirou seu capacete lentamente, revelando que por baixo usava uma faixa que cobria o topo de sua cabeça, porém seus olhos estavam revelados e tais quais os de Konstantinos eram feitos de uma só cor, sem nenhuma parte branca. Ao contrário do cão, os de Zoe eram amarelos.

- É graças a esses olhos que eu sei o que você é, muito antes de ter me dito. - ela apontou para os olhos amarelos. - Eu fui construída em um laboratório. Já leu Frankenstein, né? Bem, eu comecei a existir antes dele, mas é basicamente a mesma coisa.

- Sei lá… Parece ser a resposta padrão das pessoas. - ele parou de falar assim que ela começou a retirar o elmo, em sinal de respeito. Estava se mordendo de curiosidade desde o começo, é claro, mas jamais perguntaria nem pediria isso dela. Se alguém tem um elmo de leão, Julien preferia aceitar, e jamais julgar. Os olhinhos verdes do rapaz pararam sobre os amarelos e sem esclera dela, e ele sorriu.

Seus olhos são realmente lindos. - não havia nenhum pingo de qualquer coisa que não fosse sinceridade nele. - E que bom que você não liga pro que eu sou, é realmente um alívio. Sabe, as pessoas não receberam a notícia muito bem lá na minha cidade.

O bule apitou e ele se levantou para preparar as duas xícaras de chá de jasmim.

Certo. Konstantinos, bebe alguma coisa? Talvez um potinho com água fresca?

Ele ofereceu, preparando o que ele escolheu antes de levar as xícaras de volta para a área das poltronas.

Mary Shelley? Já li sim, nossa. Você quer dizer, com raios e tudo mais?

- Bom, não dá para esperar que as pessoas entendam muito daquilo que vai contra o que acreditam. São insuportavelmente teimosas.

Se antes ela tivera alguns toques de cuidado para manter sua compostura, ali ela perdeu totalmente e corou levemente. Nunca seria algo romântico, não era assim que Zoe funcionava e apesar de Julien ser um querido, também não fazia a sua preferência. Não, aquilo era pura vergonha. Raramente alguém elogiava seus olhos e na maioria dessas vezes foram elogios sobre a sua capacidade de enxergar certas coisas, não o da aparência deles. A coloração era mórbida, o fato de não ter esclera assustava as pessoas. Mas, como ela própria dissera, essas pessoas viveram suas vidas inteiras acreditando que certas coisas eram imutáveis, logo não deveria se surpreender que elas tinham tanta aversão à ela assim.

- Ah, imagino. Eu fui afugentada de várias cidades, sabe? - a coloração do rosto de Zoe voltou ao pálido normal. - Ele bebe água sim. Mas vive pedindo para comer... o que era mesmo?

- Sterjne. - falou Konstantinos.

- Isso aí que ele falou.

Se Julien pesquisasse o significado, veria que Konstantinos queria comer estrelas.  Curiosamente haviam petiscos em lojas próximas com o formato de estrelas.

- Não sei se teve raios, mas praticamente isso, sim.

- Você tem toda razão. Deve ter sido difícil. E vocês têm estado juntos desde sempre?

Ele perguntou referindo ao adorável cachorrinho.

- Estrelas... Ah tipo isso aqui?

Coincidentemente havia aparecido um pacote de petiscos em forma de estrela naquela manhã no quarto e Julien se lembrou de onde estavam. Abriu e ofereceu um a Konstantinos.

- Ter passado por tudo isso deveria ser ainda mais triste e solitário se vocês não tivessem um ao outro. Eu mesmo... Não tinha muita gente quando era vivo, mas o meu tempo nem se compara ao seu pelo que você diz.

- Não, eu encontrei Konstantinos alguns anos após sair do laboratório. Foi coincidência.

Konstantinos se aproximou do petisco oferecido por Julien e cheirou. Então olhou para Julien e então de novo para o petisco e o comeu. Zoe havia passado tempo o suficiente com o cachorro para saber que ele não estava necessariamente satisfeito, claro que aparentava estar, mas talvez ele estivesse falando de um outro petisco em formato de estrelas. De qualquer forma aquilo saciaria a sua fome, então ele latiu para Julien, para que ele lhe desse mais.

- Foram anos difíceis que ficaram mais fáceis com o Konstantinos, mas o lado bom de estarmos aqui é que não precisamos mais lidar com a solidão. Tem gente como nós aqui.

Prontamente, Julien ofereceu mais uma estrelinha enquanto assentia, concordando com Zoe.

- Concordo. Bem, eu não encontrei muitas pessoas por aqui ainda, já que parecem bem reservados. Mas inevitavelmente irei, porque tenho um objetivo, de restaurar essa mansão à sua antiga glória. Ela ficou muito tempo sem o cuidado correto, e acho que tem apreciado o que eu tenho feito.

Ele olhou para as paredes e o teto, como se a casa de algum modo estivesse concordando com ele.

A primeira coisa que fiz foi na estufa. Tinham muitas plantas lá que eu nunca tinha visto, e aos poucos elas estão voltando a crescer. Mesmo depois de tantas horas vendo tutoriais do YouTube, eu não sabia se ia funcionar. Você gosta de plantas? Gostaria de ir lá um dia?

Ele bebeu um pouco de seu chá, e quase comeu o petisco de Konstantinos, mas no último momento notou o erro e o entregou ao cachorro.

- É, imaginei que alguém estivesse arrumando o local. Nas poucas vezes que saí eu vi que a mansão estava aos poucos sendo restaurada.

Era do costume de Zoe prestar atenção nas mudanças ao seu redor, foi assim que conseguiu evitar a humanidade durante tantos anos. Ainda que estivesse em um local seguro ela não perdeu esse hábito, ainda mais quando seus olhos eram uma melhoria tão ampla considerando a visão normal dos humanos. Porém nem tudo era notado, visto que haviam diversos locais da mansão que ela ainda não havia visitado, tanto por falta de vontade como por medo do que poderia se encontrar nesses locais. Vai que ela dá de cara com um... bom, nada seria tão fora do normal assim, mas ainda seria assustador. Como Udra, o espectro que entrara em seu quarto.

- Eu gosto de plantas, mas nunca fui lá. Me reservo mais à sala de estudos. - Zoe tomou um gole do chá e sorriu. - Eu adoraria ir com você.

- Quando eu era vivo, eu tinha algumas plantinhas no meu apartamento, mas como eu tava sempre trabalhando e chegando muito tarde, eu acabava esquecendo de cuidar delas. A única exceção é aquela ali, um Jacinto roxo. Ela veio comigo de Nova Orleans e ainda estou meio relutante em deixá-la junto das outras. Embora aqui seja meio... Apertado às vezes.

Ele tinha consciência que o local estava abarrotado de móveis e objetos, mas um hobby não conseguia cancelar o outro.

- Vamos lá depois do chá, eu preciso regar as plantas depois que o sol baixar no horizonte. Ela fica linda à noite tanto quanto durante o dia.

Ele bebeu mais do chá e ofereceu também alguns biscoitos.

- Pensando bem, Zoe, você deve ter acumulado bastante conhecimento em todos esses anos. O que você gosta de estudar, na sala de estudos? - ele perguntou com um sorriso.

- Combinado!

Zoe aproveitou para pegar um dos biscoitos. Conversar com Julien deixava-a bem livre de estresse, assim como Konstantinos parecia estar mais em paz naquele lugar, comendo seus petiscos em forma de estrela. Deveria visitá-lo mais vezes, nem que fosse para ter um momento onde conversava com outra pessoa sem se preocupar demais com o que poderia acontecer ou como poderia parecer para essa pessoa. Era... refrescante. Outros seres do mundo sobrenatural geralmente precisavam de um tempo para se abrirem e então se tornarem mais tranquilas. Zoe era uma delas. Mas Julien simplesmente pulava essa barreira.

- Ciência de todo o tipo e filosofia. Mas, se eu tivesse que focar em uma ciência, seria Biologia.

- Ooh, que legal! Precisei pesquisar muito sobre botânica quando comecei a trabalhar na estufa. Mas tem algum motivo específico para você ter tanto interesse em biologia?

Ele ficou genuinamente entretido na conversa, ansioso para saber mais sobre Zoe e tudo o que ela tinha a contribuir. Julien não havia tido uma vida muito boa, ou produtiva. Mas após sua morte foi que ele finalmente conseguiu entender e valorizar cada momento que se passava vivo. Ele estava realmente muito grato por ser imortal agora, já que apreciava muito estar vivo, e havia conseguido um bom caminho com seus projetinhos malucos. Mas ele não conseguia nem começar a imaginar o que era passar centenas, milhares de anos sozinho. Então, ele realmente gostaria que Zoe se sentisse confortável para falar tudo o que quisesse, para contar sobre suas experiências, seus medos, seus objetivos. Eles, afinal, tinham todo o tempo do mundo.

Julien se recostou em sua poltrona confortável, e acariciou a cabeça de Konstantinos conforme se preparava para ouvir.

- Bem...

Zoe gesticulou para seu corpo, da cabeça aos pés. Ela era um fruto da combinação de várias ciências, é claro, mas a principal era biologia. Talvez química chegasse perto da posição ocupada pela outra, mas se quisesse entender melhor como seu corpo funcionava, ela teria que estudar biologia. Havia um problema, é claro. Estava estudando por algumas décadas, acompanhando os novos avanços da área e tentando descobrir mais sobre si mesma, mas por mais maldito que fosse, Álmos fora um gênio. Os avanços que ele fez sozinho poderiam ter elevado a ciência a outro patamar, mas ele preferiu ser egoísta.

- Eu quero saber mais sobre mim, entende? Quero entender como esse corpo funciona e como isso foi possível.